Independência ameaçada
Neste ano de 2009 estamos comemorando o bicentenário do nascimento de Louis Braille, o genial francês que criou o maravilhoso sistema de leitura e escrita para cegos. Há quase 200 anos!
Ele merece todas as homenagens que lhe são prestadas nas inúmeras festas e eventos que estão acontecendo no Brasil e em todo o mundo.
Em 1939, há 70 anos atrás, David Abraham criou a máquina de escrever pelo sistema Braille para os cegos, a forma mais rápida e efetiva para este tipo de escrita, a caneta da pessoa cega.
Todos concordam que a leitura-escrita do Braille é fator crítico no desenvolvimento da pessoa cega. Sem isso ela jamais conseguirá a independência aspirada por todo ser humano.
No entanto, olha que ironia! No meio de tantas comemorações, que situação absurda! A máquina não é accessível às pessoas cegas de nosso país! Elas não têm direito ao seu mais importante instrumento de comunicação! Enquanto em muitos países as pessoas com deficiência visual utilizam os mais sofisticados recursos de informática, no Brasil não podem ter a máquina de escrever em Braille, o instrumento básico para sua educação e sua vida.
Desde o nascimento de minha filha, já lá se vão 31 anos, venho lutando pelo direito das crianças cegas terem sua máquina de escrever. Sempre foi uma questão de honra para mim e Victor, meu marido. Víamos a importância da máquina para Lara, e não achávamos justo que as outras crianças não tivessem o mesmo direito, por questões econômicas.
Há 30 anos atrás eram pouquíssimas as famílias que podiam comprar a máquina, importada, cara e inacessível.
Esperava-se que o governo tivesse alguma iniciativa para a fabricação da máquina no Brasil, devido ao seu enorme impacto social, mas isto não aconteceu. O setor privado por sua vez nunca se interessou, por considerar este um negócio pouco lucrativo.
Bem, seguindo o exemplo de Hellen Keller quando disse: “não há barreiras que o homem não possa transpor,”nunca deixamos de lutar para mudar esta situação!
Ao fundarmos Laramara, Victor iniciou a luta pela fabricação da máquina no Brasil, para que fosse possível a todas as pessoas cegas terem este importante meio de comunicação e não apenas aquelas com alto poder aquisitivo.
Após anos de trabalho, investimento, pesquisa, acordos, negociações e campanhas, Laramara, com apoio do Senai, que desenvolveu com seus alunos as peças necessárias, iniciou a fabricação da máquina. Mas, além de fabricarmos a máquina, passamos a desenvolver constantes campanhas junto a empresas e pessoas físicas que resultaram na distribuição gratuita de 2.323 máquinas para crianças e jovens de todo o Brasil, beneficiando 1.579 instituições e escolas e inúmeras pessoas cegas, garantindo a um grande número de brasileiros o acesso à educação, informações e tecnologias.
Todas as máquinas vendidas ou doadas por Laramara em parceria com empresas, foram acompanhadas de um manual desenvolvido por ela, com um curso completo de Braille, procurando divulgar o aprendizado desse sistema em todos os recantos de nosso país. Além disso, realizamos inúmeros cursos de Braille destinados a pais e professores e criamos 25 brinquedos para que as crianças tenham contato com este sistema bem cedo, da mesma forma que as crianças que enxergam têm com as letras comuns. É ainda o único local que dá assistência técnica e manutenção da máquina no Brasil.
Muitas de nossas máquinas foram adquiridas pelas Secretarias de Educação em todo o Brasil, que as disponibilizaram para escolas e salas de recursos, tornando possível a inclusão escolar das crianças e jovens cegos.
Agora pasmem! Em Janeiro de 2009, ano do bicentenário de Louis Braille, fomos impedidos através de uma decisão liminar provisória concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação movida por uma instituição estrangeira, de continuar a produção da máquina, sob alegação de ser nossa máquina muito semelhante a que ela produz. A máquina é de domínio público, não existe patente sobre ela por ser fabricada há mais de cinqüenta anos, não tendo havido qualquer perícia sobre a máquina de Laramara com a finalidade de constatar qualquer irregularidade.
Por outro lado existem 6 outros fabricantes de máquina Braille no mundo e todos usam o mesmo princípio básico do sistema Braille que usamos em nossa máquina. Usamos a mesma tecnologia de todas as outras, todas elas são similares, mas não iguais.
Enquanto isso, a máquina não é fabricada no Brasil há 9 meses e a importada é vendida por 3.000 reais, preço inviável para as famílias brasileiras. Por outro lado, a suspensão dos projetos de doação feitos por Laramara está prejudicando a educação de centenas de crianças brasileiras.
De acordo com nossa última pesquisa, realizada em abril de 2009 existem milhares de pessoas com deficiência visual, muitas delas cegas, matriculadas em escolas, instituições ou participantes de projetos da Laramara, e 238 escolas e instituições, cadastradas em nossos projetos, esperando pela máquina.
Gostaríamos ainda de lembrar a importância da fabricação da máquina com custo baixo para atender as crianças cegas que vivem em países como Paraguai, Bolívia, Argentina e demais países da América Latina, que não têm acesso nem mesmo à reglete e punção e muito menos à máquina Braille.
No ano de 2008 houve a ratificação da Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, por meio de Decreto do Legislativo 186 de 9 de julho de 2008. Trata-se do primeiro texto internacional que possui força de norma constitucional no Brasil, conforme prevê a Emenda 45. O item G do Artigo 4º diz o seguinte:
Princípios Gerais -
- Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a tecnologias de preço acessível.
Vamos ou não cumprir esta norma constitucional?
Referência no Brasil e exterior no diagnóstico funcional da visão, habilitação, reabilitação da pessoa cega e baixa visão, apoio à educação e inclusão de crianças com deficiência visual e múltipla deficiência, capacitação para o mercado de trabalho e encaminhamento profissional, a Laramara, instituição sem fins de lucro, é também um centro de propagação de conhecimentos e experiências inovadoras, produtora de materiais pedagógicos, geradora de recursos e tecnologias que objetivam a melhoria da qualidade de vida e inclusão social.
Cabe agora uma pergunta: Quem garante o direito da pessoa cega, quem defende seu direito à máquina, seu mais importante meio de escrita? Existe algum órgão ou instituição a quem possamos recorrer? Preciso desta resposta! Será que vamos neste ano do bicentenário de Louis Braille, retroceder 30 anos, continuar nos lamentando pela situação da pessoa cega?
Laramara pretende continuar nesta luta para garantir o acesso das pessoas à máquina, pois temos estrutura, equipamento e equipe especializada.
Agradecemos à Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência que, por meio de sua Secretária Dra. Linamara Rizzo Batistela nos apoiou e defendeu enfaticamente nesta questão.
Agradecemos ainda o apoio da Organização Nacional dos Cegos do Brasil, que congrega 92 instituições de cegos e que por meio do seu presidente, Antonio Jose do Nascimento Ferreira, se manifestou publicamente em favor da fabricação da máquina Braille por Laramara.
Esperamos que todas as pessoas sensíveis deste país tomem conhecimento do atentado ao direito da pessoa cega à acessibilidade e comunicação e se manifestem neste momento tão significativo do bicentenário de Louis Braille, artífice da autonomia e independência da pessoa cega.
Mara Olímpia de Campos Siaulys